Wassily Kandinsky acreditava que as cores podiam cantar. Para ele, a arte era uma linguagem universal, capaz de expressar emoções, estados de espírito e ideias, muito além do que os olhos veem. Sua trajetória como artista moderno atravessou revoluções estéticas, choques culturais e guerras mundiais, e cada fase de sua obra reflete as mudanças do mundo ao seu redor.

Neste post, vamos percorrer as fases fundamentais da produção de Kandinsky, com foco em obras icônicas e seu contexto histórico, um mergulho na jornada de quem abandonou o visível para pintar o invisível.

Primeiros anos: Da Rússia à Alemanha

Wassily Kandinsky nasceu em Moscou, em 1866, e estudou direito e economia antes de se dedicar à pintura. Ainda jovem, mudou-se para Munique, onde iniciou sua formação artística formal. Seu olhar, porém, já se desviava dos cânones acadêmicos: ele se interessava pelas cores das estampas folclóricas russas, pela espiritualidade do Oriente e pela música como forma de expressão abstrata.

Kandinsky foi um dos primeiros a propor que a arte não precisava representar o mundo visível. Influenciado pelo simbolismo, pelo misticismo russo e pelo compositor Richard Wagner, começou a experimentar uma pintura cada vez mais subjetiva. Em sua autobiografia, ele descreve ter sido profundamente tocado por uma exposição de Claude Monet, em especial, pela forma como uma imagem de um feno podia ser composta de manchas de cor sem perder seu poder emocional.

 

O Início da Abstração

Color Study, (1913).

 

📍 Munique, início dos anos 1910

Em Color Study, vemos Kandinsky recém-saído do universo acadêmico e mergulhado na liberdade expressiva da cor. Era um momento de dúvida e descoberta. Ele buscava uma nova forma de pintar, uma que não dependesse da representação de objetos, mas sim da vibração interna de linhas, formas e tons.

Essa obra marca um ponto de virada: Kandinsky começava a abandonar o figurativo e se aproximar da abstração lírica, onde cada cor e cada composição deveria tocar diretamente a alma. Sua ligação com a música crescia, ele via os quadros como composições, as cores como notas.

Foi também nesse período que Kandinsky fundou, ao lado de Franz Marc, o grupo "O Cavaleiro Azul" (Der Blaue Reiter), que unia arte, espiritualidade e experimentação. A cor azul, símbolo do infinito espiritual, passou a ser central em sua linguagem pictórica.

 

Arte como Construção

Violet, (1923).

 

📍 Alemanha, anos 1920 — Bauhaus

Durante seu período na Bauhaus, Kandinsky não apenas produzia, mas ensinava. Era uma fase de racionalidade estética, onde a arte era vista como construção. Em Violet, é possível perceber essa abordagem: cada forma parece calculada, cada cor possui função.

Na Bauhaus, Kandinsky ministrava aulas sobre teoria das cores e formas geométricas. Acreditava que o triângulo evocava tensão e ação, o círculo, harmonia e calma, e o quadrado, estabilidade. Essa correspondência entre forma, emoção e espiritualidade era a base de seu ensino e de sua prática.

Mesmo em meio a essa lógica construtiva, a espiritualidade continuava presente, agora filtrada por uma linguagem quase matemática. Kandinsky defendia que a arte deveria buscar um equilíbrio entre o racional e o espiritual.

 

O Espírito que Se Eleva

Upward, (1929).

 

Em Upward, Kandinsky já está em plena maturidade artística. As formas geométricas surgem organizadas em equilíbrio dinâmico, apontando para cima, como o título indica.

Essa obra sintetiza sua busca por elevação espiritual, mesmo dentro da linguagem racional da Bauhaus. O artista une estrutura e emoção, revelando que a geometria também pode conter alma.

Kandinsky acreditava que a arte podia transformar o interior humano, despertar um tipo de escuta sensível. Seus quadros não eram apenas para serem vistos, mas para serem experienciados, como uma música que reverbera dentro do espectador.

A Tensão do Tempo

Unstable Compensation, (1930).

 

📍 Alemanha, fim dos anos 1920

No fim da década de 1920, a Alemanha vivia momentos de instabilidade política e social. A própria Bauhaus estava sob pressão do regime nazista, que via o modernismo com desconfiança.

Unstable Compensation parece refletir esse sentimento: formas que ameaçam colidir, cores que se equilibram por um fio. Mesmo assim, há uma tentativa de encontrar ordem dentro do caos, um reflexo do desejo de manter a arte como espaço de harmonia em tempos conturbados.

Logo depois, a Bauhaus seria forçada a fechar suas portas, e Kandinsky, mais uma vez, teria de buscar refúgio.

O Silêncio de Paris: 

Gris, (1931).

 

📍 França, anos 1930-40

Refugiado na França após o fechamento da Bauhaus, Kandinsky se distanciava do ambiente institucional, mas não da arte. Em Gris, a paleta é mais contida, os elementos parecem suspensos no espaço. É uma obra de silêncio.

Com a Segunda Guerra se aproximando, a atmosfera é de incerteza. Mas Kandinsky mantinha sua linguagem viva, mesmo diante do medo e do exílio. Seus trabalhos dessa fase se tornam mais refinados, mais concentrados, quase como meditações visuais.

    Em 13 de dezembro de 1944, Kandinsky faleceu em Neuilly-sur-Seine, aos 77 anos, após um AVC. Sua arte, no entanto, continuaria influenciando gerações de artistas, designers e pensadores.

Reconhecimento e Legado Pós-Morte

Após sua morte em 1944, o reconhecimento da obra de Kandinsky cresceu de forma exponencial. Sua importância como fundador da arte abstrata foi consolidada por estudiosos, colecionadores e museus ao redor do mundo. Em particular, sua obra passou a ser vista como um elo vital entre o simbolismo do século XIX, o expressionismo do início do século XX e a abstração geométrica que dominaria a arte do pós-guerra.

Instituições como o Museu Guggenheim, em Nova York, e o Centre Pompidou, em Paris, hoje guardam vastos acervos de Kandinsky e o celebram como um dos principais nomes da arte do século XX. Sua obra também passou a ser estudada por teóricos da psicologia das cores, da música e da educação artística, evidenciando sua transversalidade.

Além disso, seus escritos teóricos, especialmente o livro Do Espiritual na Arte (1911), continuam influenciando artistas e pensadores. Nele, Kandinsky discute a cor como uma força psíquica e defende que a verdadeira arte é aquela que nasce de uma necessidade interior. Essa filosofia o coloca entre os grandes pensadores da estética moderna.

Conclusão: A Arte como Música e Meditação

O legado de Wassily Kandinsky é imenso. Ele foi pioneiro da arte abstrata, teórico da cor, educador na Bauhaus e um dos primeiros a pensar a arte como um campo sensorial total.

Para ele, cada quadro era uma composição, como uma sinfonia visual. A cor era som. A forma, ritmo. E o silêncio, parte da melodia. De Color Study a Gris, seu percurso revela uma alma em busca de linguagem para o invisível.

Seu trabalho nos convida a ouvir com os olhos e sentir com o espírito.