A Semana de Arte Moderna de 1922 foi mais do que um evento artístico: foi um sintoma de um mal-estar cultural vivido por uma geração urbana, jovem e ansiosa por romper com a estética importada da Europa. O palco foi o Theatro Municipal de São Paulo. O contexto era uma cidade em expansão, cheia de imigrantes, rupturas sociais e novas elites industriais que buscavam formas próprias de expressão cultural.
Theatro Municipal de São Paulo
O Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 1911, foi o palco simbólico da Semana de Arte Moderna de 1922. Inspirado na Ópera de Paris, com lustres imponentes e arquitetura eclética, o espaço contrastava com o espírito de ruptura dos modernistas. Foi justamente esse contraste que deu força ao gesto: ocupar um templo da elite com música dissonante, poesia livre e pintura ousada foi, por si só, uma provocação estética e política.
Uma ruptura anunciada (1917–1921)
Antes de fevereiro de 1922, a inquietação já se manifestava. Em 1917, Anita Malfatti realizou uma exposição individual em São Paulo, apresentando obras influenciadas pelo expressionismo alemão e pelas vanguardas europeias.

Monteiro Lobato (18/04/1882 - 04/07/1948)
A recepção foi agressiva. Monteiro Lobato, representante da crítica conservadora, atacou publicamente o que chamou de "paranoia ou mistificação".

Anita Malfatti (02/12/1889 - 06/11/1964)
Anita voltava da Alemanha e dos Estados Unidos, onde estudou com mestres como Ernst Kirchner e Kandinsky, nomes centrais no expressionismo e na Bauhaus.
Kandinsky Unstable Compensation
Suas figuras distorcidas, paletas intensas e traços livres representavam não uma fuga, mas uma tentativa de traduzir os dilemas humanos e existenciais de um mundo pós-guerra. Ela pintava o que via, mas também o que sentia. A crítica negativa a colocou como símbolo da ousadia moderna, mesmo antes de qualquer “semana”.
Exposição de Tarsila do Amaral no Rio de Janeiro, em 1929
Fonte: Comunidade Cultura e Arte: A modernidade brasileira nas telas de Tarsila do Amaral e de Anita Malfatti
Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, embora com trajetórias distintas, formaram um dos diálogos mais significativos do modernismo brasileiro. Anita abriu caminho com coragem ao enfrentar a crítica conservadora em 1917, e sua ousadia serviu de referência para Tarsila, que só começou a pintar profissionalmente depois da Semana de 1922. Quando Tarsila retornou da Europa com novas influências, como o cubismo de Léger, encontrou em Anita uma interlocutora com quem compartilhava a ambição de criar uma arte brasileira moderna. As duas se admiravam mutuamente e, apesar das diferenças de estilo, atuaram juntas no grupo dos cinco — com Mário, Oswald e Menotti — formando uma frente coesa no início da década.
1922: palco, vaias e vanguarda

Grupo dos cinco: Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral
Quando a Semana de Arte Moderna aconteceu, entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, Anita já era figura central do grupo. Ao lado dela estavam Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos, entre outros. Todos, de alguma forma, estavam vivendo um ponto de virada pessoal: ou voltavam de temporadas na Europa ou rompendo com as convenções familiares e acadêmicas.
Tarsila do Amaral Abaporu
Tarsila do Amaral, que ainda não havia participado da Semana, seria impactada diretamente por ela. No ano seguinte, em Paris, entraria em contato com Pablo Picasso, Fernand Léger, Alexandra Exter e Henri Matisse, e criaria o seu próprio caminho dentro do modernismo, unindo vanguarda europeia e iconografia brasileira. Suas obras, como “Abaporu”, nascem desse diálogo direto entre o que aprendeu com os modernistas europeus e o que resgatou da cultura nacional.
Di Cavalcanti (06/09/1897 - 26/10/1976)
Di Cavalcanti, que organizou o evento, havia passado um tempo em Paris e voltou entusiasmado com o cubismo, que conheceu com Leo Gestel e Wilhelm Lundstrøm. A experiência europeia, no entanto, não gerava reverência: servia de comparação para mostrar o quanto o Brasil precisava criar suas próprias formas. Di usava a figura humana popular, especialmente o trabalhador e o boêmio urbano, como tema de suas telas. Era pintura como documento de um tempo.
Victor Brecheret (15/12/1894 - 17/12/1955)
Victor Brecheret, escultor ítalo-brasileiro, apresentou obras em gesso que combinavam volumetria clássica com abstração moderna.
Sua passagem por Roma o colocou em contato com ideias neoclássicas, mas o diálogo com nomes como Egon Schiele e Marsden Hartley levou sua escultura a um grau de síntese visual até então inédito no Brasil.
Heitor Villa-Lobos (05/03/1887 - 17/11/1959)
Heitor Villa-Lobos, por sua vez, misturava instrumentos populares como o cavaquinho com estrutura sinfônica. Subiu ao palco com roupas pouco convencionais, enfrentando vaias do público. Mas sua música traduzia exatamente o que o grupo vivia: o conflito entre tradição e invenção.
Mário, Oswald e a literatura da cidade
Mário de Andrade e Oswald de Andrade não estavam apenas rompendo com o verso alexandrino; estavam forjando uma nova ideia de Brasil. Mário, funcionário público e musicólogo, via na fala popular e no folclore um caminho para construir uma identidade nacional. Suas leituras durante a Semana refletiam essa tentativa de transformar o que era considerado “menor” em matéria-prima para uma literatura urbana e mestiça.
Oswald, por outro lado, vinha de uma família rica e colecionava provocações. Seu humor corrosivo e linguagem telegráfica expunham o ridículo da elite brasileira que copiava Paris, mas ignorava o próprio país. Em 1922, ele ainda não havia escrito o Manifesto Antropofágico, mas seu espírito já era de devoração cultural: engolir o europeu, digerir e transformar.
E a influência estrangeira?
Young Woman with Ibis Edgar Degas
A geração de 1922 não rejeitava o que vinha de fora — pelo contrário, se alimentava disso para propor um novo Brasil. Claude Monet, Paul Gauguin, Van Gogh e Edgar Degas foram referências importantes, não como modelos, mas como ponto de partida para a criação de outra linguagem. Mário de Andrade chegou a estudar a pintura de Henri Rousseau em seus ensaios, e a crítica brasileira comparava as cores intensas de Tarsila ao exotismo de Hilma af Klint e Salvador Dalí.
Principais artistas por área participantes:
Artes Plásticas
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Anita Malfatti – pioneira do modernismo no Brasil, apresentou obras de forte expressão e cores ousadas.
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Tarsila do Amaral – embora não tenha exposto em 1922, fazia parte do mesmo círculo e tornou-se um dos maiores ícones do movimento.
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Di Cavalcanti – idealizador e organizador do evento, apresentou pinturas inspiradas no povo e na vida brasileira.
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Vicente do Rego Monteiro – trouxe influências do cubismo e do art déco.
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John Graz – artista suíço radicado no Brasil, apresentou obras de estilo modernista.
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Zina Aita – ítalo-brasileira, representou a vertente expressionista.
Literatura
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Mário de Andrade – um dos líderes intelectuais do movimento, apresentou poemas e ideias modernistas.
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Oswald de Andrade – autor de manifestos e defensor da ruptura com o academicismo.
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Menotti Del Picchia – poeta e articulista, apoiador do grupo modernista.
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Guilherme de Almeida – poeta e jornalista, participou como orador.
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Ronald de Carvalho – poeta e ensaísta, também recitou textos durante o evento.
Música
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Heitor Villa-Lobos – apresentou suas composições, que causaram estranhamento por sua ousadia e inovação.
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Guiomar Novaes (mencionada em registros paralelos) – pianista de renome internacional que influenciou o cenário musical, embora não tenha participado diretamente do evento.
Arquitetura e Escultura
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Victor Brecheret – escultor que expôs obras com traços modernos, rompendo com o academicismo.
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Antonio Moya – arquiteto que trouxe contribuições às discussões sobre estética moderna.
O Legado Perene: A Semana como Ponto de Partida
Após a explosão de 1922, o grupo de artistas se dispersou, mas suas ideias se espalharam como pólvora. A Semana de Arte Moderna não foi o ponto final de um movimento, mas seu catalisador e início. A década de 1920 foi marcada por revistas efêmeras e novos manifestos (como o Movimento Pau-Brasil e o Verde-Amarelismo), todos desdobramentos diretos daquele fervor inicial.
A arte nascida desse momento é o reflexo de um Brasil que, pela primeira vez, ousava olhar para si mesmo no espelho, aceitando o reflexo fragmentado, tropical, estranho e, acima de tudo, autêntico. Os quadros de Anita, as esculturas de Brecheret, os poemas de Mário e Oswald, e a música de Villa-Lobos nasceram de uma urgência comum: a de se libertar da expectativa colonial, enfrentar os próprios conflitos internos e criar uma cultura que fosse, finalmente, original.
O Modernismo brasileiro, iniciado com a Semana de Arte Moderna de 1922, pavimentou o caminho para gerações futuras de artistas e intelectuais, influenciando a arquitetura (com nomes como Oscar Niemeyer), o design gráfico (inspirado na estética da Bauhaus e em mestres como Paul Klee), e a literatura que viria (com Clarice Lispector e o Regionalismo).
A Semana de Arte Moderna de 1922 deu ao Brasil a coragem de ser ele mesmo, complexo, mestiço, tropical e, sobretudo, moderno.


Egon Schiele Adele Herms