Salvador Dalí foi muito mais do que um pintor de relógios derretidos. Este catalão excêntrico transformou suas obsessões, traumas e delírios em algumas das obras mais icônicas do século XX. Sua trajetória começa na pequena Figueres, em 1904, carregando desde o nascimento um peso invisível que moldaria toda a sua arte.

Os Primeiros Anos: A Sombra de Um Irmão Morto



 

Salvador Felipe Jacinto Dalí i Domènech nasceu em 11 de maio de 1904, na Catalunha. Espanha. Mas ele não foi o primeiro Salvador Dalí da família. Nove meses antes, seu irmão mais velho, também chamado Salvador, havia morrido de gastroenterite aos dois anos. Os pais mantinham o retrato do irmão morto na casa e, aos cinco anos, Dalí foi levado ao túmulo do menino. Ali lhe disseram que ele era a reencarnação do irmão falecido.

Essa convivência com a morte e a identidade fragmentada marcaria profundamente sua psique. Em 1921, quando tinha apenas dezesseis anos, perdeu a mãe, Felipa Domenech Ferrés, vítima de câncer de mama. Dalí descreveu este momento como o golpe mais devastador de sua vida, afirmando que adorava a mãe e não conseguia se resignar à perda. O pai, Salvador Dalí i Cusí, um advogado de temperamento autoritário, casou-se posteriormente com a cunhada, união que o jovem artista aceitou com respeito.

 

The sandman

 

Durante essas primeiras dores, Dalí começava a descobrir sua vocação. Em 1916, durante férias de verão em Cadaquès com a família de Ramón Pichot, um artista local que viajava frequentemente a Paris, teve seu primeiro contato com o impressionismo. Aquelas pinceladas de luz mediterrânea despertaram algo no adolescente. No ano seguinte, seu pai organizou uma exposição de seus desenhos a carvão na casa da família, e em 1919 realizou sua primeira exposição pública no Teatro Municipal de Figueres.

 

Madrid e as Amizades que Moldariam o Surrealismo

 

 

Academia de Artes de San Fernando

Fonte: https://www.academiacolecciones.com/fotografias/historia-academia-san-fernando.php?pag=17&orden=3&direccion=0 

 

Em outubro de 1921, Dalí mudou-se para Madrid e ingressou na Academia de Artes de San Fernando. Já então chamava atenção pelas ruas com cabelo longo, grandes laços ao pescoço, calças até os joelhos e casacos compridos, imitando o estilo de Oscar Wilde. Mas mais do que a aparência, eram seus experimentos artísticos que intrigavam os colegas. Dalí começava a explorar o cubismo, movimento que conhecia apenas através de revistas e de um catálogo que Pichot lhe oferecera, já que não havia artistas cubistas em Madrid naquele momento.

 

Dream Caused By The Bee

 

Foi durante esses anos na capital espanhola que estabeleceu duas das amizades mais importantes de sua vida. Conheceu o poeta Federico García Lorca, com quem desenvolveu uma relação profunda e complexa. Lorca, apaixonado por Dalí, tentou em duas ocasiões ter uma relação sexual com o pintor, fato que o próprio Dalí admitiria anos depois. Também se tornou próximo de Luis Buñuel, o cineasta que colaboraria com ele em obras cinematográficas revolucionárias.

Nesta fase, Dalí pintava obras como "Cesto de Pão" (1926), que demonstrava seu domínio técnico impecável da pintura realista. A obra apresenta um cesto de vime com pedaços de pão sobre um fundo escuro, pintado com precisão quase fotográfica. A luz incide lateralmente, criando sombras que revelam cada textura do tecido e da palha trançada. Este trabalho seria fundamental para mostrar que suas futuras distorções surreais não eram produto de falta de técnica, mas de escolhas conscientes.

Pouco antes de completar os estudos, em 1926, Dalí foi expulso da Academia. Durante os exames finais, declarou que ninguém na instituição era competente o suficiente para avaliá-lo. Era a arrogância de um jovem que já sabia para onde ia.

 

Paris, Picasso e o Nascimento do Método Paranoico-Crítico

Em 1924, Dalí fez sua primeira viagem a Paris e encontrou-se com Pablo Picasso. O jovem catalão, com sua audácia característica, disse a Picasso: "Vim vê-lo antes de ir ao Louvre". Picasso, que já havia ouvido falar bem de Dalí através de Joan Miró, respondeu: "Fez você muito bem". Este encontro marcou o início de uma influência mútua. Nos anos seguintes, Dalí criaria uma série de trabalhos fortemente inspirados por Picasso e Miró, enquanto desenvolvia gradualmente seu estilo único.

 

Raphael's Madonna

 

O ano de 1929 foi transformador. Dalí colaborou com Luis Buñuel no curta-metragem "Un Chien Andalou", um filme de 17 minutos que chocaria o mundo com sua célebre cena de um olho sendo cortado por uma navalha. A obra, carregada de simbolismo freudiano e imagens oníricas desconexas, não seguia narrativa lógica alguma. Era puro surrealismo cinematográfico.

 

Gala Éluard e Dalí

Fonte: https://www.foreverbarcelona.com/gala-dali-biography/

 

Mas foi no verão daquele ano que Dalí conheceu a pessoa que mudaria sua vida para sempre. Em agosto, encontrou Gala Éluard, nascida Elena Ivanovna Diakonova na Rússia, então casada com o poeta surrealista Paul Éluard. Gala tinha dez anos a mais que Dalí e seria sua musa, empresária, amante e obsessão pelo resto da vida. Ela deixou o marido e se mudou para a Catalunha com o jovem pintor.

Nesse mesmo período, Dalí juntou-se oficialmente ao grupo surrealista em Paris. Trouxe ao movimento o que chamou de "método paranoico-crítico", uma técnica em que o artista induzia em si mesmo um estado paranoico para acessar o inconsciente e criar arte. Diferente do automatismo pregado por André Breton, líder dos surrealistas, Dalí defendia um processo mais controlado, onde a razão coexistia com a loucura.

 

A Persistência da Memória: Quando os Relógios Derreteram

Em 1931, Dalí pintou sua obra mais famosa: "A Persistência da Memória". Neste pequeno quadro de apenas 24 x 33 cm, relógios de bolso derretidos penduram-se sobre galhos, sobre uma plataforma e sobre uma forma disforme que remete a um rosto. Ao fundo, os penhascos de Cadaquès se erguem sob uma luz dourada.

 

 

A ideia surgiu em um dia quente de agosto, quando Dalí observou um pedaço de queijo Camembert derretendo. Naquele momento, vivia uma fase de intensa produção criativa ao lado de Gala, estabelecendo-se como artista e buscando afirmação no competitivo cenário artístico parisiense. A teoria da relatividade de Einstein estava no ar, questionando a rigidez do tempo. Dalí transformou esse conceito abstrato em imagem visceral: o tempo não é sólido, pode se dobrar, derreter, tornar-se maleável.

As formigas que aparecem devorando um dos relógios carregam o simbolismo da morte, decomposição e desejo sexual, temas recorrentes na obra de Dalí. A forma disforme no centro, com cílios longos, é uma auto representação do artista em estado de inconsciência onírica. Esta obra sintetiza perfeitamente sua técnica: precisão acadêmica renascentista a serviço de imagens absolutamente irracionais.

 

A Ruptura com os Surrealistas e a Acusação de Fascismo

Enquanto consolidava seu estilo, Dalí começava a se distanciar politicamente dos surrealistas. A maioria do grupo adotava orientação marxista, mas Dalí se declarava anarco-monárquico. André Breton, cada vez mais irritado com as posições políticas ambíguas de Dalí e sua crescente comercialização da arte, acusou-o de defender Hitler no ensaio "O Fenômeno Hitler". Dalí negou veementemente, mas a tensão aumentava.

 

Ma Nurse

 

Em 1934, Breton cunhou o anagrama "Avida Dollars" (Salvador Dalí), traduzível como "ávido por dólares", uma acusação de que o artista havia se vendido ao capitalismo. Dalí replicou com sua típica arrogância: "A única diferença entre eu e os surrealistas é que eu sou o surrealismo". Em 1939, foi oficialmente expulso do movimento.

Durante este período, Dalí criou obras como "Construção Mole com Feijões Cozidos" (1936), pintada meses antes da Guerra Civil Espanhola eclodir. A tela mostra uma figura grotesca, quase monstruosa, feita de partes de corpos humanos que se contorcem e se dilaceram, apoiada sobre feijões. Dalí pintou esta obra em um momento de crescente tensão política na Espanha, antecipando a autodestruição que o país sofreria. A violência está implícita na composição: membros alongados se estrangulam, se comprimem, numa anatomia impossível que expressa o horror da guerra fratricida que se aproximava.

O Exílio Americano e a Conversão Religiosa

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1940, Dalí e Gala fugiram para os Estados Unidos, onde viveram por oito anos. Este período de exílio foi produtivo e controverso. Dalí trabalhou com Hollywood, desenhou joias, criou cenários teatrais e continuou pintando.

Em 1942, publicou sua autobiografia "A Vida Secreta de Salvador Dalí", repleta de exageros e fantasia, consolidando sua persona pública excêntrica. Naquele mesmo ano, denunciou Luis Buñuel como ateu e comunista, causando a demissão do cineasta do Museu de Arte Moderna de Nova York. Esta traição nunca seria perdoada por Buñuel e manchou definitivamente a amizade entre os dois catalães.

Após a guerra, Dalí retornou à Espanha e algo fundamental havia mudado: ele redescobriu o catolicismo. Em 1947, um frei italiano chamado Gabriele Maria Berardi alegou ter realizado um exorcismo em Dalí na França. O artista agradeceu com uma escultura de Cristo na cruz. Verdade ou performance, este episódio marcava uma nova fase.

O Misticismo Nuclear e as Obras Religiosas

 

A bomba atômica de Hiroshima impactou profundamente Dalí. Ele começou a fundir temas religiosos católicos com conceitos da física nuclear, criando o que chamou de "misticismo nuclear". Em 1949, pintou "Madonna de Port Lligat", apresentando a Virgem Maria e o menino Jesus em formas fragmentadas, flutuando em suspensão, como se fossem compostos de átomos separados. Dalí vivia então com Gala em Port Lligat, numa pequena casa de pescadores que transformaram em refúgio e ateliê, voltando às suas raízes catalãs após os anos nos Estados Unidos.

 

 

"Corpus Hypercubus" (1954) mostra Cristo crucificado sobre um hipercubo, uma figura geométrica de oito cubos. Gala aparece aos pés da cruz, olhando para cima, enquanto Dalí reproduz a si mesmo no corpo de Cristo. A obra foi pintada num momento de intensa exploração religiosa e científica, quando Dalí estudava geometria de quatro dimensões e teoria dos conjuntos. O hipercubo flutua sobre um tabuleiro de xadrez, e o corpo de Cristo está perfeitamente proporcional, demonstrando que Dalí nunca abandonou o domínio anatômico clássico.

Sua obra religiosa mais ambiciosa é "O Sacramento da Última Ceia" (1955), que atualmente pertence à National Gallery of Art em Washington. Pintada em formato panorâmico, mostra Jesus e os doze apóstolos em uma ceia que ocorre sob uma estrutura dodecaédrica transparente, flutuando sobre as águas da baía de Port Lligat. O corpo de Cristo é translúcido, permitindo ver a paisagem através dele. Dalí pintou esta obra aos 51 anos, estabelecido como um dos artistas mais famosos do mundo, mas ainda obcecado em provar sua maestria técnica e criar obras que dialogassem tanto com a tradição renascentista quanto com a ciência moderna.

O Teatro-Museu e os Últimos Anos

A partir de 1960, Dalí começou a trabalhar em seu projeto mais ambicioso: o Teatro-Museu Salvador Dalí em sua cidade natal, Figueres. Este seria o maior trabalho de sua carreira, consumindo sua energia até 1974, embora continuasse fazendo acréscimos até meados da década de 1980. O museu é uma obra de arte total, com esculturas surrealistas gigantes no exterior, instalações bizarras e cenários que brincam com a percepção.

 

 

Durante os anos 1960 e 1970, Dalí não se limitou à pintura. Criou joias intrincadas, como "The Royal Heart" (1953-1954), um coração de ouro com quarenta e seis rubis, quarenta e dois diamantes e quatro esmeraldas, construído de forma que o centro pulsasse mecanicamente. Em 1969, desenhou o logotipo da empresa de doces Chupa Chups, que permanece praticamente inalterado até hoje.

Mas os anos finais foram trágicos. Em 10 de junho de 1982, Gala morreu em Port Lligat. Dalí, então com 78 anos, entrou em profunda depressão. Recusava-se a comer, foi alimentado por sonda nasal e perdeu completamente a vontade de viver. Em 1980, uma combinação perigosa de medicamentos não prescritos havia danificado seu sistema nervoso, causando tremores intensos que o impediam de pintar. O Mal de Parkinson agravava seu estado.

Mudou-se para o castelo de Púbol, que havia comprado para Gala. Em 1984, um incêndio misterioso irrompeu em seu quarto. As circunstâncias nunca foram esclarecidas completamente: poderia ter sido uma tentativa de suicídio, negligência de sua equipe ou até uma tentativa de homicídio. Dalí foi resgatado com queimaduras e levado de volta a Figueres, onde um grupo de amigos e patronos garantiu que vivesse seus últimos anos com dignidade no Teatro-Museu.

 

Allégorie de Soie

 

Em novembro de 1988, foi internado com insuficiência cardíaca. Em 5 de dezembro, recebeu a visita do rei Juan Carlos da Espanha, que confessou ser um devoto admirador de sua arte. Em 23 de janeiro de 1989, enquanto ouvia sua gravação favorita de "Tristão e Isolda" de Wagner, Salvador Dalí morreu de insuficiência cardíaca em Figueres, aos 84 anos. Foi sepultado na cripta de seu Teatro-Museu, do outro lado da rua da igreja de Sant Pere, onde havia sido batizado, feito sua primeira comunhão e velado seu irmão morto oitenta e oito anos antes. O círculo se fechava.

O Legado: Muito Além dos Relógios Derretidos

Salvador Dalí produziu mais de 1.500 pinturas ao longo de sua carreira, além de litografias, esculturas, ilustrações de livros, cenários teatrais, filmes, joias e objetos de design. Suas obras estão espalhadas por museus do mundo inteiro, com as maiores coleções no Teatro-Museu Dalí em Figueres e no Salvador Dalí Museum em Saint Petersburg, Florida.

Seus símbolos recorrentes criaram uma linguagem visual única: os relógios derretidos representando a relatividade do tempo; os elefantes de pernas finas carregando obeliscos, evocando a leveza impossível do peso; os ovos simbolizando esperança e vida intrauterina; as formigas significando morte, decadência e desejo sexual; os gafanhotos representando medo e desperdício.

Dalí influenciou gerações de artistas, designers, cineastas e publicitários. Seu bigode pontudo e arrebitado tornou-se tão icônico quanto suas pinturas, transformando-o numa marca viva. A excentricidade calculada, as declarações provocativas e a persona teatral às vezes eclipsavam sua arte, gerando críticas de que era mais showman do que artista sério. Mas esta era precisamente parte de seu método: transformar a própria vida numa obra surrealista.

Politicamente controverso, financeiramente ambicioso, tecnicamente impecável e psicologicamente fascinante, Salvador Dalí permanece uma das figuras mais complexas da arte moderna. Ele viveu entre a razão e a loucura, entre a tradição e a ruptura, entre o sagrado e o profano, criando um corpo de trabalho que ainda hoje nos convida a questionar a natureza da realidade, do tempo, da memória e dos sonhos.