A vida de Paul Gauguin é uma dessas trajetórias que rompem com tudo o que se espera de um artista do século XIX. Nascido em Paris em 1848 e criado parte da infância no Peru, ele começa sua vida adulta longe das artes. Trabalha como marinheiro mercante, serve na marinha francesa e só aos 23 anos se estabelece como agente de câmbio. Era casado, pai de cinco filhos e vivia uma rotina estável. A pintura era apenas uma prática de domingo.
Essa estrutura começa a ruir com o colapso financeiro de 1882. Com a perda do emprego, Gauguin mergulha na pintura. Primeiro em Paris, depois em Pont-Aven, e finalmente em Arles, ao lado de Vincent van Gogh. Essa convivência termina em colapso. Os dois artistas discutem, a relação degrada, Van Gogh entra em crise e Gauguin parte. Desgastado pela pobreza, pela rejeição do meio artístico e pelo fracasso familiar, ele toma uma decisão radical: deixar a Europa.
Em 1891, com 43 anos, Gauguin embarca para o Taiti. O que ele busca não é apenas um novo cenário. Ele quer uma ruptura total. Quer viver fora das normas, longe do capitalismo europeu, em um lugar onde possa pintar o que chama de verdadeiro.
Brooding Woman (1891): o impacto da chegada
Ao chegar ao Taiti, Gauguin encontra um território já profundamente modificado pelo colonialismo francês. Esperava uma cultura “pura”, mas vê igrejas, escolas missionárias e indígenas europeizados. Ele se instala em Papeete, vive em pobreza e começa a pintar.
É nesse contexto que surge Brooding Woman. A figura feminina, sentada, com o olhar baixo, expressa uma quietude quase opressiva. Não há comunicação com o espectador. A cena é silenciosa, contida, feita com cores terrosas, verdes pesados, um ambiente que não sugere o paraíso. A mulher parece carregada por um cansaço que não é físico, mas simbólico.
Essa imagem reflete o próprio estado de Gauguin naquele momento. Ele está em choque. Tudo o que projetava como ideal é desfeito em realidade. E a pintura não disfarça. O traço é seco, o corpo é duro, o espaço é mínimo. O silêncio entre o artista e o mundo se torna pintura.
Two Tahitian Women (1892): adaptação e desejo
Depois de um tempo em Papeete, Gauguin se muda para uma vila mais isolada. Aprende o idioma, passa a conviver com os locais e inicia uma relação com Teha’amana, uma jovem de 13 anos. Esse convívio se transforma em linguagem visual. A sensualidade do corpo feminino, a frontalidade do olhar e a simplicidade do gesto tornam-se elementos recorrentes.
Em Two Tahitian Women, duas figuras aparecem em pé, nuas, segurando flores. Elas não se mostram com pudor, mas também não seduzem. Elas estão ali. Olham direto. A técnica é plana, sem profundidade clássica. A luz é constante. Não há sombra. Tudo é declarado.
Essa pintura apresenta um tipo de calma que não é passiva. As duas mulheres compartilham o mesmo gesto, a mesma verticalidade, mas não são duplicadas. Cada uma é individual. Juntas, formam uma presença que domina a cena. A força está na naturalidade. É uma imagem que expressa um desejo por permanência, um desejo por estabilidade, mesmo em meio à ruptura.
When Will You Marry? (1892): crítica e desconforto
Ainda durante esse primeiro período no Taiti, Gauguin produz uma das obras mais complexas da sua carreira. When Will You Marry? mostra duas mulheres. A primeira, em primeiro plano, tem o corpo parcialmente nu, ornado com flores. A segunda está ao fundo, vestida com roupas tradicionais taitianas. O título da obra carrega ironia. A pergunta "Quando você vai se casar?" carrega um tom moralista que não combina com a liberdade visual da cena.
Essa pintura não é apenas sobre o contraste entre o recato e a sensualidade. Ela é sobre o olhar europeu. Gauguin se posiciona como crítico da moral ocidental, mas também participa dessa mesma lógica. Ele explora a figura exótica, constrói um cenário que parece natural, mas é profundamente carregado de tensão cultural.
A técnica é refinada. O uso de planos sobrepostos, cores suaves ao fundo e tons vibrantes no corpo em primeiro plano criam uma estrutura de hierarquia visual. A mulher seminua domina a tela. Ela olha para frente, mas não para o espectador. A mulher recatada desvia o olhar. Esse jogo de direções visuais reforça a distância entre as duas, e entre o artista e as culturas que retrata.
In the Waves (1893): o corpo à deriva
De volta à Europa, Gauguin está doente, esgotado e marginalizado no circuito artístico. Passa um tempo na Bretanha, onde pinta In the Waves. Aqui, o corpo feminino aparece envolto pelo mar. É difícil dizer se ela mergulha, emerge ou se afoga. A pintura não responde.
Tecnicamente, a obra rompe com qualquer ideia de ilustração. A água é uma massa verde, espessa, quase abstrata. O corpo é vermelho, pesado, como se estivesse prestes a ceder. A composição é instável. Não há equilíbrio, nem eixo de simetria. Tudo é tensão.
Essa pintura é quase um grito mudo. Não há paisagem, nem fundo. Não há narrativa. Só o corpo e o mar. É um retrato do esgotamento, mas também da persistência. A figura está em movimento. Ela luta, mesmo que não saiba se vai vencer. O gesto é de sobrevivência.
A conexão entre arte e vida: ruptura como destino
Essas quatro obras formam uma linha quase biográfica. Brooding Woman é o impacto da realidade. Two Tahitian Women é a adaptação e o desejo de conexão. When Will You Marry? é a crítica cultural e o incômodo do olhar. In the Waves é o esgotamento e a resistência final.
Gauguin não buscava apenas pintar paisagens exóticas. Ele queria quebrar as fronteiras da arte europeia, mas também as fronteiras pessoais. Rompeu com a família, com o trabalho, com a religião, com a sociedade. Mas nunca rompeu com a pintura. Ela foi sua forma de dizer o que não conseguia organizar em palavras.
E essas obras, mesmo com toda a distância temporal, continuam tocando em temas atuais. Deslocamento, desejo, corpo, silêncio, crítica, cansaço, vontade de fugir, de pertencer, de continuar. A arte de Gauguin é feita de tudo isso.