Em 1925, Tarsila do Amaral criou "O Mamoeiro", uma tela que captura a essência da paisagem urbana brasileira em plena transformação. A obra, pintada em óleo sobre tela com dimensões de 65 cm x 70 cm, pertence ao acervo da Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Naquele momento, Tarsila vivia o auge de sua fase Pau-Brasil, período em que se dedicava a retratar o Brasil com olhos renovados, combinando técnicas vanguardistas europeias com temas genuinamente nacionais.

 

O Contexto da Década de 1920

 

 

A década de 1920 marcou profundas transformações no Brasil. Os primeiros automóveis circulavam pelas ruas das grandes cidades, a industrialização se acelerava e a população urbana crescia rapidamente. O Rio de Janeiro e São Paulo experimentavam uma modernização veloz, mas desigual. A população mais pobre se espalhava pelas periferias e, no caso carioca, pelos morros. Foi exatamente esse fenômeno social que Tarsila capturou em "O Mamoeiro".

Quando pintou essa tela, Tarsila estava casada com Oswald de Andrade e profundamente envolvida com o movimento modernista brasileiro. O ano anterior, 1924, havia sido particularmente importante: ela viajara com Oswald, Mário de Andrade, Menotti del Picchia e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars pelas cidades históricas de Minas Gerais. Essa viagem, conhecida como a "Caravana Modernista", redefiniu o olhar de Tarsila sobre o Brasil. Ela descobriu as cores, as formas e os tipos humanos que caracterizariam sua fase Pau-Brasil.

 

A Composição Visual

 

 

"O Mamoeiro" apresenta uma composição vibrante e geometrizada que traduz a ocupação dos morros brasileiros. No centro da tela, ergue-se um mamoeiro estilizado, com seu tronco alongado e folhas simplificadas em formas quase geométricas. A árvore tropical, típica da paisagem brasileira, torna-se protagonista da cena.

Ao redor do mamoeiro, casas coloridas se distribuem em diferentes planos. As construções são representadas de forma simplificada, com volumes reduzidos a formas básicas e cores chapadas. Há uma casa rosa, outra amarela, uma construção azul com telhado vermelho. Cada edificação recebe uma cor intensa e pura, sem graduações ou sombras naturalistas. A paleta cromática é característica da fase Pau-Brasil: azuis profundos, rosas vibrantes, amarelos intensos, verdes tropicais.

Uma ponte aparece atravessando a composição, conectando diferentes áreas do morro. Pequenas figuras humanas pontuam a paisagem, indicando a presença de pessoas nesse espaço urbano em formação. Há também outros elementos da flora brasileira estilizados geometricamente, como cactos e outras plantas tropicais.

O céu aparece em azul intenso, ocupando a parte superior da tela. Não há nuvens ou variações tonais. É um céu brasileiro, límpido e luminoso, que contrasta com as cores quentes das construções e da vegetação.

 

Influências e Técnica

 

 

A simplificação e estilização das formas em "O Mamoeiro" estabelecem uma relação direta com o cubismo que Tarsila havia estudado em Paris. Entre 1920 e 1922, a artista frequentou ateliês de mestres como Fernand Léger, que a ensinou a valorizar formas geométricas e cores primárias. No entanto, Tarsila não copiou simplesmente as vanguardas europeias. Ela as digeriu e as transformou, aplicando essas técnicas a temas brasileiros.

A perspectiva utilizada na obra é não convencional. Tarsila apresenta uma visão elevada, quase aérea, que permite ver simultaneamente diferentes planos da paisagem. As casas não seguem as regras rigorosas da perspectiva renascentista. Em vez disso, são dispostas de forma a criar um padrão decorativo e expressivo, privilegiando a composição visual sobre a representação naturalista.

A técnica de pintura é característica de Tarsila: pinceladas lisas, cores chapadas, ausência de textura aparente. A superfície da tela é uniforme, quase gráfica. Esse tratamento reforça o caráter sintético e moderno da obra.

 

A Fase Pau-Brasil

 

 

"O Mamoeiro" é obra emblemática da fase Pau-Brasil de Tarsila do Amaral. Esse período, que se estende aproximadamente de 1924 a 1928, caracteriza-se pela valorização de temas nacionais, cores tropicais, formas simplificadas e um olhar simultaneamente moderno e primitivo sobre o Brasil.

O termo "Pau-Brasil" vem do manifesto escrito por Oswald de Andrade em 1924, publicado no Correio da Manhã. O manifesto propunha uma arte brasileira de exportação, assim como o pau-brasil havia sido o primeiro produto brasileiro exportado durante a colonização. A ideia era criar uma arte genuinamente nacional que pudesse dialogar de igual para igual com as vanguardas europeias.

Tarsila enche suas telas desse período com formas e cores intensas, refletindo temas tropicais brasileiros. Exalta a fauna, a flora, mas também as máquinas, os trilhos, símbolos da modernidade urbana. Há uma celebração do Brasil moderno que nasce, mas sem rejeitar as raízes populares e a paisagem natural.

Outras obras importantes dessa fase incluem "A Feira" (1924), "São Paulo (Gazo)" (1924), "Morro da Favela" (1924), "Carnaval em Madureira" (1924), "O Pescador" (1925) e "O Vendedor de Frutas" (1925). Em todas essas telas, Tarsila constrói uma visualidade brasileira moderna, combinando observação da realidade social com interpretação formal sofisticada.

Significado Social e Cultural

 

 

"O Mamoeiro" documenta um momento crucial da urbanização brasileira. A pintura mostra o início da ocupação dos morros das grandes cidades pela população de baixa renda. Esse fenômeno, que se intensificaria ao longo do século XX, já estava em curso na década de 1920.

Tarsila não retrata essa realidade social de forma crítica ou denunciante. Seu olhar é celebratório, quase lírico. As cores vibrantes, a composição harmoniosa e a estilização decorativa criam uma imagem poética da paisagem urbana brasileira. A artista transforma o morro em jardim cromático, onde o mamoeiro tropical se ergue como símbolo de brasilidade.

É importante refletir sobre a mudança de hábitos das pessoas a partir da grande concentração populacional que passou a habitar os morros. "O Mamoeiro" registra esse momento de transição, quando as cidades brasileiras deixavam de ser predominantemente coloniais e rurais para se tornarem urbanas e industriais.

Fortuna Crítica e Exposições

"O Mamoeiro" integrou diversas exposições importantes ao longo das décadas. Em 2019, a obra participou da exposição "Tarsila Popular" no Museu de Arte de São Paulo (MASP), uma das mostras mais visitadas sobre a artista. A curadoria de Fernando Oliva buscou apresentar a relação de Tarsila com uma ideia de popular e de identidade popular.

A tela também foi incluída na exposição "Tarsila do Amaral, peintre brésilienne à Paris, 1923-1929", realizada entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006, que examinou a produção da artista durante seus anos de formação e consolidação estilística.

O fato de a obra pertencer ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP garante sua preservação e acessibilidade para pesquisadores e o público em geral. O IEB possui uma das mais importantes coleções de arte modernista brasileira, incluindo obras fundamentais de Tarsila.

Legado e Relevância Contemporânea

"O Mamoeiro" permanece relevante quase um século após sua criação. A obra antecipa questões urbanas que se tornariam cada vez mais urgentes no Brasil: a ocupação desordenada das periferias, a segregação espacial, a beleza e a precariedade coexistindo nas paisagens urbanas.

A visão de Tarsila em 1925 traz as cores vivas de uma paisagem iluminada pelo sol tropical, com os mamoeiros em destaque. Seu olhar moderno, informado pelas vanguardas europeias mas profundamente brasileiro em sua sensibilidade, criou uma iconografia que continua a definir como imaginamos o Brasil.

A obra exemplifica a capacidade de Tarsila de sintetizar influências diversas em uma linguagem visual original. O cubismo está presente na geometrização das formas, mas não domina a composição. A cor tropical é brasileira, não europeia. O tema é local, específico, mas tratado com sofisticação cosmopolita.

"O Mamoeiro" representa um momento em que a arte brasileira conquistava maturidade e autonomia. Tarsila não estava mais copiando modelos estrangeiros nem repetindo fórmulas acadêmicas. Estava criando uma visualidade moderna autenticamente brasileira, capaz de dialogar com as vanguardas internacionais mantendo sua identidade própria.

 

Hoje, quando olhamos para essa tela de 1925, vemos não apenas um documento histórico da urbanização brasileira, mas também uma obra de arte que continua fresca, vibrante e relevante. As cores permanecem intensas, a composição mantém seu dinamismo, e a visão de Tarsila sobre o Brasil continua a nos desafiar e inspirar.