Poucos nomes do Renascimento carregam tanta complexidade quanto Leonardo da Vinci. Pintor, engenheiro, inventor e anatomista, sua arte nunca esteve dissociada da sua curiosidade pelo funcionamento da natureza e do corpo humano. Nascido em 1452, na pequena Vinci, na Toscana, Leonardo era filho ilegítimo de Piero da Vinci, um notário florentino, e Caterina, uma camponesa. Esse fator social teve impacto profundo em sua trajetória: impedido de seguir a carreira jurídica do pai, encontrou na arte e nas ciências um espaço onde sua origem não era um obstáculo.

Primeiras investigações e "Madonna and Child" (1469–1476)

Durante seus anos como aprendiz no ateliê de Verrocchio, Leonardo começou a realizar estudos autônomos, desenhando cabeças femininas, mãos e drapeados de tecidos com minúcia. Ainda antes de receber encomendas importantes, já era conhecido por seu domínio do chiaroscuro (técnica artística que utiliza fortes contrastes entre luz e sombra para criar a ilusão de volume e drama em uma obra) e da anatomia superficial. Sua contribuição na pintura "Batismo de Cristo" (1475), atribuída ao mestre Verrocchio, já se destaca por representar com suavidade o anjo do lado esquerdo, sendo considerada superior ao próprio mestre.

 

Batismo de Cristo

 

Em 1476, Leonardo foi acusado de sodomia junto a outros jovens de Florença, incluindo Gian Giacomo Caprotti, conhecido como Salai. Embora tenha sido absolvido por falta de provas, o processo marcou sua juventude e ajudou a moldar o caráter reservado que manteve por toda a vida. Salai, por sua vez, tornou-se seu assistente e companheiro por mais de duas décadas, aparecendo em desenhos, documentos de herança e relatos contemporâneos.

Logo após, entre 1476 e 1478, Leonardo abriu seu próprio ateliê e começou a receber encomendas menores. Um exemplo dessa fase é a Madonna and Child, pintura que se afasta da rigidez medieval. A Virgem segura o menino com leveza e naturalidade. O fundo ainda é simbólico, mas já se nota o interesse do pintor pela paisagem como elemento vivo.

 

Madonna and Child

 

Outra obra, o projeto do cavalo de bronze, encomendado por Ludovico Sforza, chegou a ser iniciado com moldes de argila em tamanho real. No entanto, em 1494, com a invasão francesa de Milão, as 70 toneladas de bronze reservadas para a fundição da escultura foram desviadas para a fabricação de canhões. Pouco depois, as tropas francesas destruíram os moldes de argila, utilizando-os como alvos de treinamento com arco e flecha. Esse desfecho trágico revela não apenas a instabilidade política da época, mas também a vulnerabilidade da arte frente à guerra.

Foi entre 1495 e 1498 que produziu sua obra mais ambiciosa: A Última Ceia. Ao contrário das convenções do período, Leonardo dispensa halos ou gestos glorificados. As reações dos apóstolos são humanas, distintas e expressam choque, indignação, dúvida ou negação. O uso da perspectiva linear conduz o olhar diretamente a Cristo, o ponto de fuga e centro emocional da cena.

 

A Última Ceia

 

Entre 1489 e 1490, pintou Lady with an Ermine, um retrato de Cecilia Gallerani, amante de Ludovico. A introdução do animal revela uma conexão simbólica com o nome do patrono, mas também serve à construção de uma cena viva. Cecilia gira levemente o corpo, e seu olhar, lateral, dá movimento à imagem, antecipando retratos modernos.

 

Lady with an Ermine

 

A Filosofia da Observação: Leonardo e o Paragone

Uma das discussões centrais do Renascimento foi o Paragone, a comparação entre as artes. Leonardo foi um defensor apaixonado da pintura como a mais elevada das expressões artísticas. Em seus escritos, argumentava que a pintura era a arte que mais se aproximava da verdade, pois exigia observação direta, compreensão da luz, da anatomia, da perspectiva e da geometria. Ao contrário da escultura, que dependia da força física, ou da música e da poesia, que desapareciam no tempo, a pintura fixava o mundo visível com inteligência.

 

Estudos anatômicos de braços e torso

 

Essa visão fundamenta toda sua produção: seus retratos buscam não apenas a semelhança, mas a essência psicológica do retratado; seus estudos anatômicos não são apenas últimos para artistas, mas também para cientistas. Para Leonardo, a pintura era uma ciência da observação.

 

Estudos anatômicos do esqueleto e músculos do tronco

 

Durante a década de 1490, Leonardo intensificou os estudos do corpo humano. Em Milão, com apoio dos Sforza, teve acesso a cadáveres para dissecação. Seus cadernos dessa fase reúnem desenhos como estudos do crânio humano, músculos do pescoço, órgãos internos e seções do útero grávido.

 

Estudo do feto no útero

 

O Homem Vitruviano (c. 1492), talvez seu desenho mais famoso, surgiu como tentativa de aplicar as proporções ideais descritas por Vitrúvio, e demonstrar a geometria do corpo humano. O desenho mostra um homem com braços e pernas em posições diferentes, dentro de um quadrado e um círculo. Mais do que um estudo técnico, é uma síntese visual entre arte, ciência e filosofia.

 

Homem Vitruviano

 

É importante notar que esses estudos, por razões diversas, permaneceram inéditos por séculos após sua morte. Eles foram descobertos e publicados apenas na era moderna, o que significa que seu impacto na medicina renascentista foi mínimo, ainda que hoje sejam considerados documentos fundamentais da história da ciência.

A psicologia dos rostos: "The Head of the Virgin" e "Mona Lisa" (1500–1506)

De volta a Florença por volta de 1500, Leonardo passa a se interessar pelo retrato como forma de explorar a interioridade. Em The Head of the Virgin, o estudo da face inclina levemente o olhar para baixo, um gesto de contenção emocional que antecipa sua abordagem para a Mona Lisa.

 

The Head of the Virgin

 

A Mona Lisa (c. 1503–1506) foi provavelmente encomendada por Francesco del Giocondo, e representa sua esposa, Lisa Gherardini. Leonardo levou anos refinando a obra. A técnica do sfumato, desenvolvida por ele, permitiu transições suaves entre luz e sombra, criando uma ambiguidade emocional que se tornou marca registrada.

 

Mona Lisa

 

Engenharia e ciência aplicada: César Bórgia e os mapas (1502–1503)

Em 1502, Leonardo foi contratado por César Bórgia como engenheiro militar e arquiteto. Durante esse período, percorreu diversas cidades italianas, desenhando mapas topográficos, plantas de fortalezas e sistemas de irrigação. Seus mapas da cidade de Imola são considerados alguns dos primeiros exemplos de cartografia científica moderna. Essa fase foi curta, mas consolidou sua reputação como engenheiro e pensador estratégico.

 

Estudos de máquinas voadoras

 

Rivalidade com Michelangelo: tensões entre gênios

Durante sua estada em Florença e depois em Roma, Leonardo manteve uma relação tensa com Michelangelo Buonarroti. Os dois artistas, embora igualmente geniais, tinham visões de mundo e de arte profundamente distintas. Enquanto Leonardo exaltava a pintura como ciência da observação e buscava a harmonia entre arte e conhecimento, Michelangelo via a escultura como a mais nobre das artes, expressão direta da força e da forma humana.

Essa rivalidade se tornou pública em diversas ocasiões, como na disputa pela decoração do Salão dos Quinientos, no Palazzo Vecchio, onde ambos foram contratados para pintar murais monumentais — projetos que, ironicamente, nenhum dos dois finalizou. Michelangelo chegou a zombar de Leonardo em público, o que aprofundou o desprezo mútuo. Embora não tenham competido diretamente em obras concluídas, a tensão entre eles influenciou o ambiente artístico da época e simbolizou o embate entre razão e emoção, ciência e fé, cálculo e expressão.

Sob a proteção de Giuliano de’ Medici, Leonardo viveu em Roma entre 1513 e 1516. Embora rodeado por outros grandes artistas como Michelangelo e Rafael, esse foi um período de menor produção pictórica. Seus interesses voltaram-se para estudos hidráulicos, experimentos com espelhos e óptica. Seu método de escrita, com texto espelhado (da direita para a esquerda), é um dos elementos mais curiosos de seus cadernos. Alguns sugerem que era para manter segredo; outros, que era simplesmente uma forma confortável de escrita para um canhoto.

 

Wreath of Laurel

 

Religião e emoção: "Madonna and Child" e "The Last Supper" revisitadas

Ao observar novamente essas obras, é notável como Leonardo desloca o foco do divino para o humano. A espiritualidade se expressa por meio de pequenos gestos: um olhar, um toque sutil, uma sombra. A Última Ceia não mostra santos, mas homens em crise. A Madonna and Child não exibe glória, mas afeto e introspecção. Essa abordagem influenciaria profundamente artistas posteriores como Rafael e Caravaggio.

Ao chegar na França, Leonardo recebeu do rei François I o título de "Premier Peintre et Ingénieur et Architecte du Roi" (Primeiro Pintor, Engenheiro e Arquiteto do Rei). O monarca o tratava como um tesouro nacional e o considerava não apenas um artista, mas um verdadeiro filósofo. Esse reconhecimento era inédito, consolidando sua posição como gênio universal em um ambiente onde era respeitado por sua mente, além de sua arte.

Ali, escreve reflexões sobre o voo dos pássaros, a natureza da água e os limites do conhecimento humano. Sua obsessão pelo movimento — seja das marés, das nuvens ou das emoções humanas — permanece até os últimos dias.

Leonardo morreu em 1519, em Amboise, e foi enterrado na Capela de Saint-Hubert. De acordo com relatos da época, ele faleceu nos braços do rei François I, um gesto simbólico que representa o profundo respeito que o monarca nutria por ele. As causas exatas da morte não são totalmente conhecidas, mas há indícios de que ele sofria de paralisia em sua mão direita nos últimos anos, o que pode ter resultado de um acidente vascular cerebral. Seu legado atravessou o tempo como exemplo de inteligência interdisciplinar. Ele influenciou figuras como Michelangelo, Galileu e até cientistas modernos, sendo lembrado tanto por suas pinturas quanto pela extensão de seu pensamento.