Ismael Nery (1900–1934) foi um dos nomes mais enigmáticos e intensos do modernismo brasileiro. Em uma vida breve, marcada por crises existenciais, espiritualidade, amores turbulentos e uma doença que o devastou precocemente, Nery produziu uma obra singular. Ele recusou os rótulos do modernismo tupiniquim e buscou construir uma linguagem que fosse, acima de tudo, pessoal e filosófica.

 

Cada pintura sua parece carregar o peso de uma pergunta fundamental, sobre o corpo, a identidade, a alma, o tempo.

 


Figura (1927)

 

A obra Figura (1927) marca um momento de transição e consolidação de estilo. Ismael Nery já havia se afastado das influências acadêmicas e buscava uma nova expressão, onde o corpo feminino se torna símbolo de pureza, erotismo e tensão. A composição geométrica do fundo contrasta com a carnalidade das formas, revelando o embate entre o espiritual e o físico, um dilema que o artista enfrentava desde cedo, influenciado por sua religiosidade católica e seu fascínio pelo ocultismo.

Este período também coincide com a sua aproximação do movimento surrealista europeu, que ele conheceu durante sua viagem a Paris em 1927. A dualidade presente em Figura prenuncia seu mergulho em temas existenciais.


 

Perfil e Alma

 

Dentre todas as obras de Nery, poucas são tão simbólicas quanto Perfil e Alma. O quadro materializa uma das obsessões mais duradouras do artista: a relação entre o corpo visível e a essência invisível. O perfil contornado com linhas orgânicas e intensas cores escuras e vermelhas sugere a fragmentação do eu, tema recorrente em seus escritos e desenhos.

Esse momento de sua vida foi profundamente filosófico. Nery escrevia poemas e reflexões, acreditava que o corpo era uma prisão da alma e que o amor era a única ponte possível entre as dimensões. A obra dialoga diretamente com essas ideias e revela sua preocupação com o autoconhecimento e a transcendência.


 

Namorados

 

A tela Namorados é uma das mais conhecidas e mais íntimas da produção de Nery. Ela retrata Ismael e sua esposa, a poetisa Adalgisa Nery, cuja relação foi marcada por paixão e turbulência. A representação frontal dos rostos unidos, com traços quase cubistas, destaca o vínculo emocional entre os dois. Mas há uma distância no olhar, quase como se, mesmo juntos, os personagens estivessem presos em mundos interiores distintos.

Essa pintura pode ser interpretada como um retrato psicológico do casal, numa fase de relativa estabilidade. Apesar das dificuldades financeiras e dos conflitos internos, Nery vivia intensamente o amor, e isso transparece na dualidade de proximidade e separação dos corpos.

 


 

Rio-Paris

 

A obra Rio-Paris aparece em três versões: inteira, com nome e entorno branco e com nome e entorno neutro. Todas partem de uma mesma composição e mostram uma dupla dançando sobre uma paisagem que remete a construções francesas, um possível reflexo da sua estadia em Paris em 1927. O gesto fluido das figuras remete à liberdade artística e emocional que Nery experimentou naquele momento, quando pôde se aproximar dos movimentos vanguardistas europeus.

A duplicidade das figuras pode simbolizar também sua tentativa de viver entre dois mundos: o Brasil e a Europa, o corpo e o espírito, a realidade e o sonho. A repetição da obra em versões ligeiramente diferentes ressalta sua obsessão pela dualidade como conceito visual e filosófico.


 

Autorretrato (1930) 

 

Com o passar dos anos, a saúde de Ismael Nery começou a se deteriorar por conta da tuberculose. A obra Autorretrato (1930) apresenta o artista envolto por formas abstratas, em uma composição quase arquitetônica, dura e contida. O olhar é introspectivo, e os rostos sobrepostos sugerem fragmentação da identidade, como se o Nery do presente, do passado e do futuro coexistissem na mesma imagem.

Esse é o momento em que Nery passa a refletir mais abertamente sobre sua mortalidade. Em cartas e cadernos, menciona o medo da morte e a ideia de que sua arte seria o único registro duradouro da sua existência. Este autorretrato é, portanto, um espelho de sua alma adoecida, mas ainda criativa.


 

A obra marcada apenas como Ismael Nery 1930 é uma composição abstrata e etérea. As formas orgânicas e esféricas flutuam em um fundo esverdeado, com tons suaves e melancólicos. Neste período, Nery já estava fisicamente debilitado, muitas vezes confinado em casa ou hospitalizado.

Mesmo assim, sua mente permanecia inquieta. Essa pintura pode ser vista como uma tentativa de criar um espaço mental onde a dor física fosse suspensa. As esferas podem ser lidas como símbolos da alma em busca de libertação, uma leitura coerente com sua filosofia cristã-esotérica.


 

A síntese de uma alma

 

Ismael Nery morreu aos 33 anos, em 6 de abril de 1934. Sua obra foi durante muito tempo negligenciada pelos grandes círculos modernistas brasileiros, justamente por não se encaixar nos moldes do nacionalismo estético da época. Mas hoje é vista como uma das mais profundas expressões da alma moderna brasileira: existencial, complexa, íntima e universal.

 

Cada quadro é um capítulo visual de sua biografia. E nas imagens em que ele aparece ou se dissolve, como em Autorretrato (1930) ou Perfil e Alma, está o reflexo de um artista que transformou sua dor, amor e filosofia em cor e forma.