A pintura brasileira passou por transformações radicais no início do século XX, quando artistas começaram a questionar os padrões acadêmicos europeus e buscar uma linguagem própria. Duas figuras essenciais desse movimento foram Tarsila do Amaral e Ismael Nery, pintores que, por caminhos distintos, revolucionaram a arte nacional e deixaram legados fundamentais para as gerações seguintes.
Tarsila do Amaral: A Construção de uma Identidade Visual Brasileira
Nascida em 1886 no interior de São Paulo, Tarsila do Amaral cresceu cercada pelas paisagens rurais que mais tarde se tornariam elementos centrais de sua obra. Com formação privilegiada, incluindo estudos em Barcelona e na Académie Julian em Paris, ela se dedicou integralmente à arte após se separar do primeiro marido. Em 1918, conheceu Anita Malfatti e, ao retornar de Paris em 1922, foi imediatamente integrada ao grupo modernista, formando o "Grupo dos Cinco" com Anita, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia.
🎨 A Fase Pau-Brasil: O Despertar das Cores Tropicais
Em Paris (1923), Tarsila estudou com mestres cubistas como Fernand Léger e absorveu as vanguardas europeias, o que a levou a uma profunda reflexão sobre suas próprias raízes. Foi nesse período que pintou "A Negra" (1923), uma de suas primeiras obras genuinamente modernistas. A tela, que apresenta uma figura feminina negra monumental sobre um fundo geométrico, nasceu das memórias de sua infância nas fazendas paulistas. A obra funde a influência do cubismo com uma temática profundamente brasileira, fazendo-a escrever: "Me sinto cada vez mais brasileira".
Ao retornar ao Brasil, o contato com as paisagens e a cultura do interior mineiro inspirou o "Manifesto Pau-Brasil" (1924) de Oswald de Andrade, que propunha a criação de obras exclusivamente brasileiras para "exportar" a cultura nacional.
As obras dessa fase (1924 a 1928) são marcadas pelo uso de cores vivas e saturadas—o azul puríssimo, o rosa vibrante, o amarelo-sol—que a artista chamava de "cores caipiras". Ela mesclou essa paleta com a linguagem cubista, registrando a transformação do país entre o rural e o urbano:
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"A Estação Central do Brasil" (1924): Retrato da modernização da cidade.
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"Morro da Favela" (1924): Olhar para as comunidades populares, com uma geometria que humaniza a paisagem.
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"O Pescador" (1925): Valorização da identidade nacional e das raízes afro-brasileiras.
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"Paisagem com Touro" (1925): O Brasil que oscilava entre o campo (touro) e a cidade.
🍽️ A Fase Antropofágica: O Inconsciente Brasileiro
Em janeiro de 1928, Tarsila presenteou Oswald com uma tela que mudaria os rumos do modernismo: o "Abaporu". A figura estranha, que surgiu em seus sonhos, tinha pés e mãos enormes e uma pequena cabeça. Seu nome, que significa "homem que come gente" em tupi-guarani, inspirou Oswald a escrever o "Manifesto Antropófago" (maio de 1928). O movimento propunha a ideia de "deglutir" a cultura europeia, digeri-la e transformá-la em algo novo e genuinamente nacional.
Esta fase (1928 a 1930) marca sua maturidade artística, ganhando elementos surrealistas, com paisagens oníricas e criaturas fantásticas que emergem do inconsciente.
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"O Ovo (Urutu)" (1928): Cenário surrealista com uma serpente brasileira, simbolizando transformação.
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"A Lua" (1928) e "Sol Poente" (1929): Exploração de paisagens imaginárias com figuras zoomorfas.
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"Antropofagia" (1929): Síntese do movimento, fundindo as figuras do Abaporu e d'A Negra.
[Quadro de Tarsila do Amaral O Vendedor de Frutas, O Mamoeiro, A Feira e Operários]
🏭 A Fase Social: O Olhar Para as Questões do Povo
A crise de 1929 e a perda das fazendas afetaram Tarsila, levando-a a um despertar político. Seu relacionamento com o médico Osório César e uma viagem à União Soviética (1931) direcionaram sua arte para temáticas sociais.
"Operários" (1933) é a grande obra dessa fase. A tela monumental apresenta um grupo de trabalhadores de diversas etnias, representando a formação plural do povo brasileiro em frente às chaminés das fábricas, que simbolizam a industrialização. "Segunda Classe" (1933) retrata a realidade da classe trabalhadora em um vagão de trem. Nessas obras, ela manteve o tratamento volumétrico das formas, mas adotou tons mais sóbrios e terrosos, abandonando as cores vibrantes do período antropofágico.
Tarsila continuou a pintar e recebeu reconhecimento oficial, como a Sala Especial na VII Bienal de São Paulo em 1963. Apesar das tragédias pessoais (paraplegia por erro médico e a perda da filha Dulce), sua obra permaneceu relevante. Tarsila do Amaral faleceu em 1973, deixando um legado de mais de 230 pinturas e uma influência determinante para a arte moderna na América Latina.
Ismael Nery: O Surrealista Metafísico
Enquanto Tarsila buscava a identidade brasileira, Ismael Nery (1900-1934), nascido em Belém do Pará, seguia um caminho radicalmente diferente, voltado para o universal e o espiritual. Sua formação incluiu a rigorosa Escola Nacional de Belas Artes (RJ) e a Académie Julian (Paris). Na Europa, Nery mergulhou no Cubismo, no Expressionismo Alemão e, crucialmente, na Pintura Metafísica de Giorgio de Chirico, o que moldou sua visão de mundo mística e sua obsessão pela figura humana.

👤 Formação e Essencialismo
De volta ao Rio em 1921, Nery conheceu o poeta Murilo Mendes, que se tornou seu grande amigo e o principal guardião de sua memória. Seu casamento com a poetisa Adalgisa Nery e a convivência com intelectuais cariocas o levaram a estruturar o "Essencialismo" (1926), seu sistema filosófico. O Essencialismo buscava a abstração do tempo e do espaço para conceber o ser humano de forma espiritual, desvinculada de referências geográficas ou sociais.
Em sua fase cubista (1924-1927), a figura humana idealizada, composta por cilindros e formas ovais, permaneceu central, mas a serviço de uma figuração simbólica e filosófica, diferentemente do interesse de Tarsila pelo cotidiano.
✨ A Viagem Transformadora e o Surrealismo
Em 1927, uma nova viagem à Europa foi transformadora. Nery conheceu André Breton, líder do Surrealismo, e Marc Chagall. O contato com Chagall—com suas figuras oníricas flutuando, cores decompostas e temáticas poéticas—dialogou com as inquietações metafísicas de Nery, levando-o ao apogeu de sua arte.
Desse período, destaca-se o "Autorretrato" (1927), também conhecido como "Autorretrato Rio/Paris". A obra é uma síntese autobiográfica: Nery se retrata como uma ponte entre o Rio de Janeiro (vibrante, com Pão de Açúcar e mulata) e Paris (monocromática, com a Torre Eiffel inclinada). O quadro revela sua autêntica dualidade entre o Cubismo e o Surrealismo, o Brasil e a França, e a tensão entre o masculino e o feminino.
Sua fase surrealista (1927-1934) é única no modernismo brasileiro. Nery abandonou o nacionalismo para expressar valores universais e espirituais. Suas composições apresentam figuras flutuantes, cores decompostas e ambientes oníricos. Ele se expunha completamente, com figuras que frequentemente pareciam andróginas, como em "Namorados" e "Duas Mulheres", evidenciando seu interesse pela dualidade e a transcendência dos limites corporais.
💔 Os Últimos Anos e o Resgate Póstumo
Em 1930, Ismael Nery contraiu tuberculose, o que marcou profundamente sua produção final. Os trabalhos dos últimos anos, como as figuras com vísceras expostas e os corpos mutilados, revelam seu drama pessoal e a fragilidade diante da morte, tornando-se documentos de um sofrimento físico e uma profunda reflexão espiritual.
Nery faleceu em 1934, aos 33 anos, sem nunca ter vendido um único quadro. Sua obra permaneceu praticamente desconhecida. Foi graças ao empenho de Murilo Mendes que sua memória e produção foram preservadas.
O reconhecimento só veio décadas depois, com a inscrição de seu nome na 8ª Bienal de São Paulo (1965) e a retrospectiva na Petite Galerie (1966). Hoje, Ismael Nery é reconhecido ao lado de Tarsila do Amaral como um dos maiores artistas de sua geração. Sua singularidade reside no fato de que, enquanto a maioria buscava a brasilidade, ele mergulhou no metafísico e no espiritual, perseguindo o universal em vez do nacional.
Conclusão: Dois Caminhos, Uma Revolução
Tarsila do Amaral e Ismael Nery representam dois polos complementares do modernismo brasileiro, ambos essenciais:
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Tarsila voltou-se para fora, buscando capturar a identidade nacional, as cores tropicais, a cultura popular e, finalmente, as questões sociais do povo brasileiro.
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Ismael Nery voltou-se para dentro, explorando o universo metafísico, as questões existenciais, a espiritualidade e o inconsciente, buscando aquilo que é essencial a todos os seres humanos.
Ambos estudaram na mesma escola em Paris, mas utilizaram as vanguardas europeias para caminhos distintos. Juntos, provam que o modernismo no Brasil foi um campo fértil de experimentações, onde cada artista pôde forjar um legado único e de inestimável valor para a arte mundial.





