No início do século XX, enquanto o mundo passava por transformações sociais e políticas, a arte também buscava uma nova linguagem para expressar essa efervescência. A russa Alexandra Exter foi uma das figuras mais essenciais desse movimento, uma verdadeira ponte entre a tradição artística e o futuro modernista. Transitando com maestria entre a pintura, o design e o teatro, ela revolucionou a forma como se pensava o espaço cênico. Para Exter, o palco não era um mero pano de fundo, mas uma plataforma viva para as ideias mais ousadas de sua época. Suas maquetes teatrais, como as que vamos explorar neste blog, não eram simples esboços. Elas eram a síntese visual de uma vida inteira de experimentação, marcada por deslocamentos, amizades influentes e o pulso da vanguarda russa.
A genialidade de Exter reside em sua capacidade de absorver e transformar influências, criando um vocabulário visual único. Para entender sua contribuição inestimável para a história da arte, é preciso acompanhar sua trajetória, que se desenrola em três momentos-chave, cada um refletindo um estágio de sua busca incessante por inovação.
O Berço Intelectual em Kiev (1906–1914): A Semente da Geometria
A jornada de Exter começou a se consolidar em Kiev, no que hoje é a Ucrânia, entre 1906 e 1914. Sua casa se tornou um ponto de encontro para artistas inovadores como Malevich, Archipenko e os irmãos Burliuk. Esse ambiente intelectual efervescente a conectou diretamente às primeiras ideias do cubofuturismo e do suprematismo, embora sua arte nunca tenha se restringido a uma única escola. Era uma fase de assimilação e experimentação.
Nesse período, ela iniciou seus estudos espaciais, explorando a geometria como uma ferramenta para criar composições dinâmicas e com profundidade. Maquetes como a Maquette N.12 e a Maquette N.15 já mostravam sua obsessão por planos inclinados e volumes interdependentes, antecipando o que se tornaria seu vocabulário visual para os palcos. Essas obras foram um exercício fundamental, onde Exter testava a relação entre forma, espaço e movimento, lançando as bases para a linguagem cênica que ela desenvolveria mais tarde. O que a diferenciava era a busca por uma tridimensionalidade que fosse além da ilusão, buscando uma materialidade que dialogasse com o espaço real.
A Influência de Paris (1912–1914): A Geometria Encontra a Luz
As viagens frequentes de Exter a Paris entre 1912 e 1914 foram cruciais para a evolução de seu trabalho. Ela teve contato direto com o cubismo de Braque e Picasso e com o futurismo italiano. Esse intercâmbio intensificou seu uso da cor como vetor de movimento e a fragmentação do espaço em múltiplas perspectivas. A influência dessas experiências é evidente em peças como a Maquette N.14, onde a estrutura curva sobre um fundo escuro dramatiza o contraste entre o corpo do ator e a arquitetura do cenário. Era como se ela traduzisse a estética das fábricas e pontes parisienses para o mundo do teatro.
Nesse período, sua visão se aprofundou e ela passou a pensar no cenário não como um simples pano de fundo, mas como uma estrutura viva e autônoma, parte integrante da narrativa, como é possível de notar em Maquette N.13, que sugere um desfile mecânico de gestos e corpos, mostrando como a artista já antecipava a total integração entre atores e o design do palco. Exter compreendia que a cenografia tinha o potencial de ser tão expressiva quanto a atuação, podendo ditar o ritmo, o clima e a emoção de uma peça.
A Explosão Criativa na Rússia Revolucionária (1917–1923): O Palco como Manifesto
A Revolução Russa de 1917 marcou uma nova e intensa fase na carreira de Alexandra Exter. Retornando à Rússia, ela se engajou nos projetos culturais do novo regime, colaborando com teatros como o de Câmara de Tairov e o de Marionetes de Moscou. Foi então que sua cenografia atingiu o auge, unindo a pintura construtiva com o design funcionalista. A arte, para ela, deveria ser parte da vida cotidiana e, no teatro, ela encontrou o espaço perfeito para essa fusão.
A maioria das maquetes numeradas de N.01 a N.11 foram concebidas durante essa fase de intensa atividade.
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A Maquette N.01 utiliza estruturas diagonais de forte tensão e tons frios para criar uma atmosfera de drama.
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Em contraste, a N.02 utiliza vermelho e azul com elementos semicirculares e planos que remetem ao movimento, ideal para peças com deslocamento rítmico.
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Já a N.03 é um verdadeiro labirinto construtivista, com múltiplos planos sobrepostos, escadas e jogos verticais que sugerem um ambiente complexo e dinâmico, quase arquitetônico.
Em obras como a Maquette N.09 e a N.10, a artista demonstra como incorporava elementos da linguagem gráfica soviética, como linhas retas e setas, em seus cenários.
O objetivo era claro: integrar espaço e corpo, transformando os atores em parte do desenho da cena, e não meros ocupantes dela. Exter não se contentava em decorar o palco; ela o construía, transformando-o em um personagem por si só, capaz de comunicar as ideologias e a energia da nova sociedade.
Exílio e a Síntese Final (1924–1949): O Legado da Abstração
Com o endurecimento do regime soviético, Exter partiu para o exílio em Paris em 1924. Esse foi um período de maturidade e reflexão. Ela se dedicou ao ensino, aplicando os fundamentos construtivistas no design gráfico, figurino e, claro, na cenografia. Suas maquetes dessa época, como as de N.04 a N.07, refletem uma maior síntese e racionalidade.
As cores se tornaram mais planas, as estruturas mais fechadas e os elementos, mais econômicos.
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A Maquette N.04 apresenta uma estrutura quase simbólica com um arco em vermelho e azul sobre um fundo claro.
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Já a N.07, com diagonais amarelas e uma figura central isolada, sugere um palco para monólogos intimistas ou peças de menor escala.
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Na N.06, o uso do azul em colunas e planos mostra uma construção modular, quase arquitetônica, que destaca sua capacidade de criar espaços complexos com poucos elementos.
Finalmente, as maquetes N.08 e N.11 simbolizam a maturidade da artista. A primeira alcança um equilíbrio perfeito entre o vazio e a estrutura, enquanto a segunda, com suas bandeiras e mastros estilizados, parece um manifesto visual. Ambas expressam um teatro político, feito para uma nova ideologia e um novo tempo, provando que, mesmo no exílio, Alexandra Exter continuou a ser uma força incansável na história da arte moderna.
Suas maquetes são mais do que estudos para cenários; elas são obras de arte autônomas que encapsulam as ideias de uma das artistas mais visionárias do século XX. O legado de Alexandra Exter mostra o poder do teatro como plataforma para a experimentação e a inovação, onde a cenografia se eleva a uma forma de arte em si mesma. E você, qual dessas maquetes mais te inspira a ver o teatro de uma nova forma?